Nosferatu, de Robert Eggers
Saindo mais da sua caixinha de loucuras, Robert Eggers abraça um projeto de paixão que ele queria tirar do papel, agora numa posição de um diretor conceituado em Hollywood, isso permite a ele dar vida a esse projeto. Saindo do seu habitat como projetos mais autorais com sua peculiar loucura ao apresentar e desenvolver suas histórias, seja em “A Bruxa” ou, especialmente, “O Farol”, aqui é uma releitura de um clássico.
Um caminho espinhoso, especialmente por tocar em um filme tão grande e importante para a história do cinema e do terror. Todavia, Eggers sabia bem o que queria fazer e como era sua visão para uma releitura moderna para este clássico do expressionismo alemão.
Nosferatu nasceu como uma cópia do Drácula, e isto quase foi o seu fim. Para evitar a violação de direitos autorais, Murnau, diretor do clássico Nosferatu de 1922, mudou o nome do vampiro de Bram Stoker, Conde Drácula, para Conde Orlok, bem como os de outros protagonistas da história. Ele manteve grande parte do enredo do livro e muitas das ideias originais, como o castelo antigo e em ruínas nos Cárpatos e um vampiro viajando de navio para uma nova casa.
Entretanto, era óbvio que o Conde Orlok era inspirado no Conde Drácula. E Florence Balcombe, viúva de Stoker, sabia disso. Com isso, ela tomou medidas legais e, em julho de 1925, um tribunal alemão decidiu que todas as cópias do Nosferatu de Murnau deveriam ser queimadas por violação de direitos autorais. Mas naquela época o filme já havia se espalhado pelo mundo e havia inúmeras cópias dele. Era tarde demais para destruir todas elas.
E foi isso que salvou esse clássico do cinema do cruel e vazio esquecimento.
Situado a introdução de Nosferatu, voltamos a Robert Eggers. Com menos de 5 minutos de filme ele já mostrava que a sua visão de Nosferatu era algo único, perturbador e mórbido. Uma introdução potente e assustadora de um desejo proibido nesse mundo alucinatório dos sonhos. Quando Bill Skarsgård surge com a voz de Conde Orlok foi de arrepiar. Uma voz quase sem vida, obscura, mas absurdamente imponente e assustadora. O seu jeito de falar em meio a uma respiração que luta para se manter no mundo dos vivos e ao falar na sua língua, potencializa esse horror que Eggers quer mostrar.

Não é preciso vê-lo para sentir desconforto, agonia, medo. Apenas o som da sua voz, o seu timbre é aterrorizante. E o filme é sobre isso, embora tenha específicos momentos de jumpscare que fazem sentido dentro do contexto, é sobre um intenso, maléfico, mórbido terror psicológico.
Já sabemos a história de cabo a rabo, Thomas Hutter é enviado para o castelo de Orlok a fim de mediar sua ida para a Alemanha e o Conde encontrar aquela que o resgatou da escuridão e trouxe o mal para o mundo.
Já adiantando, a parte das atuações é de cair o queixo, Lily-Rose Depp com uma atuação extremamente absurda e potente, a melhor da sua carreira. Pelo seu olhar, ao franzir sua testa, a melancolia e prazer ao expor o que sentia, foi tudo magnífico. Especialmente pelos seus momentos de transe, possessão. Aquelas cenas foram de arrepiar, principalmente ao saber que não houve CGI, foi tudo a própria Lily. Assim como outros elementos, como os lobos, os ratos e os cavalos foram animais reais usados para a gravação do filme. Esses detalhes enriquecem e muito a obra. Eggers é fissurado por esses pormenores e com razão, pois fazem a total diferença na experiência que a narrativa se propõe a transmitir.

Com um elenco absurdo, além de Lily ainda tem Bill Skarsgård, Willem Dafoe, Nicholas Hoult, Emma Corrin, Ralph Ineson e Aaron Taylor-Johnson. Todos muito bem na trama ao que os seus respectivos personagens se propõe, todos muito bem mesmo. No entanto, é preciso destacar alguns nomes. Além da Lily que já citei, Skarsgård, Dafoe e Hoult são os responsáveis por elevar e muito o patamar do filme, especialmente quando eles interagem entre si, é elite.
Bill Skarsgård deu vida a Orlok, como já citei, absurdamente imponente e aterrorizante. A caracterização ficou ótima, mas a sua interpretação é coisa de outro mundo. Não precisava ser mostrado, tanto que foi lá pelo segundo ato que Eggers começa a mostrar aos poucos mais da sua aparência, no início só fica na nossa imaginação e aquela voz perturbadora fez todo o trabalho de mostrar o mal que ele representa e toda sua força obscura.

Hoult encarna um Thomas Hutter perfeito. Um deleite da atuação de Nicholas, especialmente a partir do momento em que se encontra em Cárpato, no castelo do Conde. Ao se encontrar pela primeira vez com o vampiro, Eggers destaca bem o pavor que Hutter sentia na presença e imponência de Orlok. Uma entrega absurda do ator. Que ano e que sequência está Hoult.

E Dafoe, o que falar deste homem? Um dos maiores da história recente do cinema, um ator acima do nível da elite. A partir do momento em que ele entra em cena, engrandece ainda mais as cenas. Ainda que faça o papel do explicador que nos explica tudo acerca daquele desconhecido e do mal que está por vir. Mesmo assim, como é prazeroso vê-lo atuar.

Nesse culto ao desconhecido, ao mórbido, o prazer a morte como Ellen (Lily) desabafa para Thomas (Hoult) antes dele seguir sua viagem para Cárpato, testemunhamos uma mulher com seus desejos reprimidos, muito por questões religiosas devido a sua posição como esposa e a ver lutar contra algo que sempre fez parte dela, a implorar para que Orlok a encontrasse é muito significativo. Assistir isso na tela do cinema foi uma experiência.
Não apenas nos diálogos apresentados por Ellen, mas enxergamos toda essa melancolia na ambientação criada por Eggers nessa Alemanha situada em 1838. Uma caracterização perfeita daquela cidade, daquele ambiente, o trabalho de design de produção é muito fiel ao que conhecemos do século XIX. Mais uma vez, Eggers pensando em todos detalhes, do mínimo ao máximo e fazendo a sua releitura sem perder, em momento nenhum, a originalidade da obra. Como deve ser.
A escolha do filtro azul, na maior parte dos momentos, mostrando e intensificando a melancolia da Ellen, daquele ambiente, a frieza de Wisburg numa posição de uma cidade quase sem vida, mórbida. Isso também segue o caminho de Thomas a Cárpato quando vemos um trabalho espetacular de fotografia captando a essência e transmitindo a sensação de estar naquele lugar. Assim como a excelente direção de Eggers, quando fecha a câmera no rosto dos personagens, amplifica ainda mais o que eles estão sentindo. O pavor, o terror psicológico, o prazer, o medo. É desconfortável, é agoniante e teria que ser assim mesmo.

Wisburg passa de uma cidade melancólica para uma cidade que significa morte com a chegada de Orlok trazendo a praga. Corpos espalhados pela cidade, ratos comendo corpos, ratos por todos os cantos, hospital lotado com corpos espalhados pelo chão. Um caos. Além do Orlok e sua sede insaciável.
Entre loucura, melancolia, paranoia, desejos emocionais e sexuais reprimidos, vemos uma clareza em Ellen (Lily) ao conversar com Prof. Albin Eberhart (Dafoe). Ela entende o seu papel e a sua entrega daqueles desejos passam por isso, um sacrifício através daquilo que estava preso dentro de si, o reconhecimento da escuridão e a sua entrega de corpo e alma para aquele momento. Entregar-se à escuridão insaciável. É o seu destino.

E assim foi feito.
Ao Eggers manter os pés no chão dentro da sua loucura, ampliar e potencializar toda essa questão dos desejos, dos sonhos, da melancolia, da morbidez e, principalmente, do terror é o que faz esse trabalho ser digno e primoroso. Nosferatu não cabe tanto espaço para inventar moda e assim deturpar a imagem consolidada da representação e significado desse vampiro. Havia espaço para potencializar e fazer essa releitura. Não poderia haver alguém melhor que Robert Eggers para isso.
Nosferatu, de Robert Eggers, é uma obra prima contemporânea.